segunda-feira, 18 de abril de 2022

LUCIA CROSS - peça de teatro de Lucia Millet

 



 

 

                            LÚCIA CROSS

 

 

 Peça de teatro de Lúcia Millet

  (pseudônimo)

 

 

 

  

 

 

 

Esta peça pode ser encenada sem pagamento de direitos autorais, bastando a autorização da autora. O texto com outro título e assinado com o nome real do autor está registrado na Biblioteca Nacional.

 



 

                                                 PERSONAGENS 

 

o necessários três atores para a encenação, dois homens e uma mulher.

 

Lúcia Cross – rapaz de aproximadamente 25 anos com traços delicados e cabelos naturais (não deve usar peruca) e que possa passar relativamente bem por uma mulher quando vestido e maquiado.

                                                            

Homem – aproximadamente 30 anos que fará vários papéis masculinos com trocas rápidas de roupas e adereços: Bombeiro, Vizinho Geraldo, Transeunte, Policial, Estuprador, Juarez.

 

Mulher – aproximadamente 30 anos que fará vários papéis femininos com trocas rápidas de roupas e de adereços: Síndica, Transeunte Amiga, Prostituta, Esposa de Juarez, Velha Mendiga.

 

 

 

 

 

 

                                                           CENÁRIO

 

 

O cenário é vazio com um ou outro objeto cênico para a ambientação. No apartamento de Lúcia há apenas um espelho num tripé e uma cadeira, no apartamento da Amiga e no de Juarez, há duas cadeiras, talvez um quadro, uma mesinha com um abajur para marcar a diferença. Nas cenas de rua não há objeto cênico nenhum.

 

 

 

 

 

 

 

                                                  CENA 1

 

O cenário representa o apartamento de Lúcia. Há apenas um espelho apoiado num tripé e uma cadeira.

        Lúcia entra em cena maquiada, com os cabelos (naturais) arranjados para ficarem mais femininos. Ela veste calcinha fio-dental, sutiã com enchimento e meia-calça semitransparente. Nas mãos traz um vestido e um par de sapatos de salto. Lúcia deixa os sapatos e o vestido sobre a cadeira e vai até o espelho. Ela se olha longamente, de frente, de perfil e de costas.

Lúcia(admirando sua bunda) Ummmm... Belo bumbum, hein, menina?

Depois ela se senta na cadeira e admira suas pernas, passando as mãos.

Lúcia(ri, depois) O pessoal do serviço me convidou para jogar futebol neste fim de semana. Eu disse que não podia, estava ocupado. Imagina aparecer lá com as pernas depiladas. E ainda levar umas caneladas, ficar cheia de marcas roxas... Tô fora! (alisa as pernas). Linda esta meia-calça (pausa) Gosto mesmo das meias 7/8, presas com cinta-liga. Acho tão sexy! (suspira) Ah, como essas coisas podem sair de moda!

 Lúcia volta a ficar em pé.  Ela ajeita a calcinha.

          Lúcia – A calcinha bem apertada para esconder o piu-piu. Quer dizer, esconder não esconde, mas disfarça... Tem algumas crossdressers que fazem “tucking” para esconder o pênis. Enfiam, esticam e colam o coitado... (balança a cabeça) Deve incomodar pra caramba! Prefiro deixar ele assim solto (sorri). Só não dá para usar saias justas, leggings, shortinhos, essas coisas... (pausa, continua em outro tom) Faz algum tempo comecei a me depilar. Sei lá, lingerie não combinava com os pelos. Felizmente eu nunca fui muito peludo. Primeiro foram as pernas, que ficaram maravilhosas, bem lisinhas, depois a bunda, o peito, braços, tudo. Agora eu não consigo me imaginar com pelos novamente, assim que começam a crescer eu corto tudo um aparelho elétrico... (passa as mãos pelas pernas)

Lúcia vai até a cadeira pega o vestido e começa a vesti-lo. É um vestido preto curto de malha, mais justo na parte de cima e rodado na parte da saia, com pouco decote e de mangas cumpridas. Depois de se vestir, Lúcia se aproxima do espelho.

 Lúcia(admirando-se diante do espelho enquanto ajeita o vestido sobre o corpo) Hummm! Até que enfim um vestidinho mais comportado, hein, menina! Ultimamente você estava parecendo uma vadia, só usava roupas de puta! (ri, pausa, continua em outro tom) Não dá para usar muito decote senão vai aparecer o enchimento do sutiã. E mangas cumpridas para esconder os braços de homem. (dá um suspiro) Fazer o que, a gente precisa fazer alguns sacrifícios para ser mulher! (ajeita os cabelos) Ainda bem que não preciso usar peruca, é só dar uma ajeitada nos cabelos e eles ficam bem femininos (sorri).

           Lúcia senta-se na cadeira, pega o par de sapatos.

           Lúcia – Agora, vamos lá, sapatinhos!

          Calça os sapatos femininos e admira os pés.

          Lúcia(torce a cara) Esses aqui não são muito altos, saltos largos. Eu queria mesmo usar um daqueles de salto doze, tipo agulha... (suspira) O problema é conseguir parar em cima deles (ri), e conseguir andar com aquela elegância das mulheres. Quem sabe um dia chego lá. (olha os sapatos) Com esses acho que vai ser mais fácil.

        Lúcia levanta-se e dá alguns passos. Depois se aproxima novamente do espelho.

Lúcia – Hummm! Moleza.

        Ela caminha de um lado para outro cada vez com mais segurança.

        Lúcia – É isso aí, menina, está vendo, não é tão difícil assim. É só uma questão de treino. (pausa) Eu comecei tarde, as mulheres treinam desde meninas! (pausa, caminha) Saltos doze agulha, me aguardem!

Caminha mais um pouco de um lado para outro. Depois para diante do espelho para se admirar. Ajeita os cabelos.

Lúcia – Lúcia, hoje você está linda.  (ri satisfeita).

 

 

 

 


 

                                       CENA 2 – MONÓLOGO

 

 Há uma mudança na iluminação do palco. O fundo fica escuro enquanto um facho de luz se projeta sobre Lúcia. Ela começa a falar dirigindo-se ao público.

Lúcia – Eu não sei direito por quê faço isso. Começou bem cedo, quando eu tinha meus dez, onze anos...  Sentia grande excitação quando vestia roupas de mulher, principalmente lingerie... Tenho uma irmã dois anos mais velha. Quando ficava sozinho em casa vestia as calcinhas dela e corria para me olhar no grande espelho do guarda-roupa. Ficava louco de tesão. Depois batia uma ainda vestindo a calcinha. Esse costume continuou comigo, umas épocas mais outras menos... Mas acho que ficou forte mesmo quando comecei a morar sozinho, com liberdade para me vestir como quiser em casa. (muda de tom) Eu? (pausa) Bom, eu sou Gilberto, 26 anos, solteiro, técnico de contabilidade. Não tenho amigos, só conhecidos e colegas de trabalho. Já namorei umas vezes, mas não deu muito certo, acho que não tenho muito jeito com as mulheres. Mas não sou gay, quer dizer, pelo menos não sinto atração por homens. Só gosto de me vestir de mulher, de me sentir mulher... É uma espécie de hobby, não tem nada demais. (pausa) Todo dia quando chego em casa do trabalho, tiro minhas roupas e me visto de mulher. Então me transformo em Lúcia Cross, que é como me conhecem na Internet. Lúcia Cross é famosa na rede, tem muitos de amigos e milhares de seguidores. Todos dizem que fico perfeita quando me visto de mulher e me maquio. Recebo muitas cantadas dos TLovers, aqueles homens que sentem tesão pelas crossdressers e pelas transexuais. Mas não dou bola para eles e até excluo os mais insistentes. 

Lúcia – E o que eu faço depois de me vestir? (pausa, continua num tom mais sombrio) Bom, eu fico aqui em casa, navego na Internet, tiro fotos para postar. (faz um muxoxo) Sou uma travesti de closet, de armário como chamam... Nunca tive coragem de sair de casa vestido de mulher e acho que nunca vou ter...  Há crossdressers que se reúnem, todas montadas, e até saem juntas nas baladas. Já me convidaram, mas não tive coragem... (sorri). Sei lá, acho que não ia me sentir bem. (pausa) Lúcia Cross vai continuar entre quatro paredes.

         Lúcia volta a se admirar de si no espelho de vários ângulos, faz algumas poses, caras e bocas. Depois ela sai de cena e logo começa um som de música dançante, como se ela tivesse ligado um aparelho de som. Lúcia retorna já ensaiando alguns passos de dança. Nas mãos traz uma garrafa de vinho e um copo pela metade. Bebe um gole antes de depositar a garrafa e o copo sobre a cadeira.

         Lúcia(olha-se espelho) Mais tarde vou fazer umas fotos para postar. Hoje você está demais, menina! Vamos ver quantas curtidas e comentários vou receber. (ri, continua em outro tom) Mas agora é a hora da festa! Uuuu!  

         Lúcia volta a dançar, dá voltas, rebola, parece totalmente à vontade com os sapatos femininos.  Ela interrompe a dança uma vez para tomar mais um gole de vinho. Algumas vezes Lúcia sai de cena e quando ela volta já toca uma outra música, para marcar a passagem do tempo. Enche o copo mais uma vez e bebe antes de voltar a dançar.

          Lúcia (levantando o copo para o alto) As garotas só querem se divertir...

Canta e dança ao som da música “The Girls Just Want Have Fun”

 


 

                                                       CENA 3

 

Lúcia escuta grandes pancadas a porta.

Voz fora de cena – Abra. Emergência

Lúcia corre e desliga o som.

Lúcia(assustada, grita) O que é isso? Quem está aí?

Voz fora de cena – É o bombeiro. Tem um incêndio no prédio.

Lúcia anda de um lado para outro, desesperada.

Lúcia - (gritando em direção à porta) Incêndio. Espere. Já vou (ela fica indecisa, não sabe para onde ir) Ai, meu Deus!

De repente ouve-se um grande estrondo.  Entra em cena um homem, vestindo uniforme de bombeiro, aparentemente depois de arrombar a porta.

Bombeiro(fala exaltado) Você tem de sair daqui agora, moça!!! O prédio está pegando fogo.

Lúcia(assustada) Fogo. Ai, meu Deus!

Bombeiro(puxando Lúcia para fora) Vamos, não há tempo a perder!

Lúcia(assustada) Mas eu não posso sair vestido assim!

Bombeiro(exaltado) Não é hora para vaidade, moça. Vamos sair daqui agora!

O Bombeiro arrasta Lúcia com ele para fora do palco pelo mesmo lado em que ele entrou.

Lúcia(debatendo-se) Mas eu não posso! (fora de cena) Não, por favor!

 

 


                            

                                                   CENA 4

 

        Entra em cena a Síndica com lenço e bobs na cabeça, um roupão.

Síndica (agitada) Vamos lá, gente, todos lá fora! (pausa) Onde está o Seu Gilberto do 42?  Só está faltando ele!

Entra o Vizinho em cena por detrás da síndica.

Vizinho – O bombeiro já subiu para tirar ele de lá (beijando o pescoço da síndica) Vamos, docinho, vamos sair! Está perigoso aqui.

Síndica(desvencilhando-se) Para, Geraldo! Isso lá é hora disso! Ainda falta o Seu Gilberto do 42 descer. Só saio daqui depois que ele sair.

Vizinho – Ele que se dane.

Síndica – Não, Geraldo. (bombástica) O síndico tem de ser sempre o último a abandonar o prédio, como o capitão do navio.

Vizinho(recuando) Desculpe, amorzinho, não sabia! (aponta) Tem uma moça vindo lá.

Entra em cena Lúcia assustada, olhando para os lados e para trás.

Síndica(aproximando-se de Lúcia) Moça, em que apartamento você estava? (recua surpresa) Seu Gilberto, é o senhor?

Lúcia – É sou eu, Dona Gisela. Ah! Estou vestido assim porque... porque estava ensaiando uma peça de teatro.

Síndica(olhando Lúcia de cima a baixo, irônica) Teatro, é?

Vizinho(admirando Lúcia) Não sabia que você era ator, Gilberto.

Lúcia – Ator, amador. Só de passatempo...

Vizinho(observando Lúcia) Gilberto, até que você engana bem vestido assim (comendo Lúcia com os olhos). Ele tem as pernas bonitas e um bumbum empinado!

Síndica(irritada) Geraldo, o que é isso?! Você me respeite! Não sabia que gostava dessas coisas!

Vizinho(desculpando-se) Não, amor! Eu só estava reparando. Eu gosto mesmo de mulher, você sabe?

Síndica(autoritária) Agora, chega de conversa! Temos que sair daqui senão vamos morrer todos queimados! (indicando a saída) Por ali, rápido. Eu vou atrás de vocês.

“Os três saem de cena apressados, Lúcia, Geraldo e finalmente a Síndica”.


 

                                             CENA 5 – MONÓLOGO

 

Efeito de luzes de giroflex, som de sirenes, ruídos diversos. Lúcia entra em cena, assustada, olhando para todos os lados”.

Lúcia – Meu Deus, não estou acreditando. Estou aqui estou eu na rua e vestido de mulher. Meu maior pesadelo se tornou realidade! E agora, o que vou fazer? Já pensou se passa alguém do meu trabalho e vê vestido assim... Eu ia ter que pedir demissão, não ia ter poder de ir lá novamente... Quer dizer, muitas vezes eu ia trabalhar usando calcinha e sutiã debaixo do terno, mas era um segredo meu, ninguém ficava sabendo. Agora aqui (olha a sua volta) No prédio é mais fácil, amanhã mesmo começo a procurar outro apartamento para alugar. Tomara que esse incêndio acabe logo para eu poder voltar.

 


 

                                                         CENA 6

 

O Homem e a Mulher entram em cena, com outras roupas, como transeuntes curiosos.

Homem(olhando para cima) O que está acontecendo!

Mulher(idem) Acho que alguém está querendo se atirar.

Homem – De onde?

Mulher – Ouvi dizer que é de uma daquelas janelas ali (aponta).

Homem(a Lúcia) Você sabe de alguma coisa, moça?

Mulher(dirigindo-se a Lúcia) Moça?

Lúcia(embaraçada) Quem? Eu?

Mulher – É, você!

Lúcia – É um princípio de incêndio no prédio!

Homem – Dizem que morreram uns três.

Mulher – Ouvi dizer que uma mulher se atirou pela janela para não morrer queimada.

“Ouve-se uma voz de alto falante”.

Voz no megafone – Por favor, afastem-se todos! O prédio pode desabar!

Mulher – Meu Deus, o prédio vai cair.

Homem – Vamos sair daqui.

O Homem e a Mulher começam a sair de cena. Lúcia fica onde está.

Mulher – É melhor a gente ficar assistindo do outro lado da rua.

Homem – Pode ser que mais alguém se atire pela janela.

Mulher(a Lúcia) Vamos, moça. Aqui está perigoso.

Lúcia – Já vou.

O Homem, a Mulher e Lúcia saem de cena juntos.


                                        CENA 7 – MONÓLOGO

 

A mesma ambientação da cena anterior. Luzes de giroflex, barulho de sirene, só que num tom mais baixo. Lúcia entra em cena assustada, olhando para os lados.

Lúcia(sozinha em cena Lúcia fala em tom de monólogo) Pelo menos as pessoas estão me tratando como mulher. Sempre disseram na Internet que eu era passável, quer dizer, conseguiria enganar bem como mulher. Com a síndica e o meu vizinho Geraldo não deu certo porque eles já me conheciam, mas com os estranhos... Melhor assim, imagine se todo mundo ficasse reparando: lá vai um homem vestido de mulher!

 

 


 

                                                    CENA 8

 

A Mulher (a mesma da cena anterior) entra e aproxima-se de Lúcia.

Mulher(a Lúcia) Querida, vamos ficar vendo o incêndio daqui. É mais seguro. (pausa) Você não está com frio esse vestidinho.

Lúcia – É... estou... É que eu ia a uma festa. De repente deram o aviso de fogo e tive de sair correndo.

Mulher – Você mora naquele prédio? Ai, meu Deus, coitadinha!

Lúcia – Minhas coisas ficaram todas lá, dinheiro, documentos, tudo... Só saí com a roupa do corpo.

Mulher(passando a mão no braço de Lúcia) Você está gelada! Olha, eu moro aqui pertinho. Vamos até meu apartamento e eu te empresto uma blusa.

Lúcia(temerosa) Acho melhor ficar por aqui, não deve ser nada sério. Daqui a pouco vou poder voltar para meu apartamento.

Mulher – Não, os bombeiros vão demorar para terminar. Talvez você nem possa voltar para casa hoje.

Lúcia (assustada) Será?

Mulher – Se você precisar, pode até dormir na minha em casa.

Lúcia(hesitante) É... Eu... precisava voltar para o meu apartamento para trocar de roupa.

Mulher – Eu te empresto outra roupa. Olha, querida, você vai lá em casa comigo, senta um pouco, come alguma coisa, toma um café... É melhor do que ficar aqui na rua nessa friagem. Você já está até um pouco rouca.

Lúcia – Verdade? (ainda resistindo) É que eu não queria incomodar.

Mulher – Não é incômodo nenhum. A gente tem de ajudar uma a outra, não é verdade? (indicando o caminho) Vamos, eu moro logo ali...

As duas começam a sair de cena.

Mulher – Qual o seu nome?

Lúcia – É... é... Lúcia.

Mulher – E eu me chamo Marlene. (vai saindo de cena) Em que você trabalha, Lúcia.

Lúcia(também saindo atrás de Marlene) Eu...eu...sou... contadora...

Lúcia também sai de cena.


 

                                                         CENA 9

 

Lúcia e a Mulher em cena. No cenário há duas cadeiras e alguns objetos decorativos.

Mulher – Fique à vontade, Lúcia. Sente-se.

Lúcia – Obrigado... Não quero incomodar...

Mulher – Não se preocupe, eu moro sozinha. Se precisar dormir aqui, não tem problema.

Lúcia – Acho que não vai ser preciso.

Mulher – Vamos, sente-se !

Lúcia finalmente senta-se desajeitadamente, passando as mãos na pare de atrás da saia. Fica com as pernas abertas, depois se lembra de cruzá-las”.

 Mulher – Só agora que estamos no claro que estou reparando, você está toda maquiada...

Lúcia(embaraçada) É... Eu... ia sair... Ia numa festa de aniversário... Quando aconteceu...

Mulher – Posso fazer alguma coisa pra você se sentir melhor?

Lúcia – Bem... Se você tivesse uma roupa mais discreta para me emprestar. E uns sapatos baixos.

Mulher – Eu tenho um vestido da minha prima que vai dar certinho em você, Lúcia.

Lúcia – Eu... eu preferia uma calça comprida e uma camiseta, um tênis velho.

Mulher – Que número você calça?

Lúcia – 40.

Mulher – Nossa, como você tem os pés grandes, Lúcia! Eu calço 36.

Lúcia – Não tem importância que fique um pouco apertado...

Mulher(repara melhor em Lúcia e começa a ficar desconfiada) Minhas blusas também não vão caber em você, tem ombros largos. E as calças iam ficar curtas, você é mais alta.

Lúcia – Escuta, Marlene, você foi muito legal comigo, vou ser sincera com você. Na verdade eu não sou mulher, sou um homem.

Mulher(afastando-se assustada) Ai, meu Deus... Eu bem que achei alguma coisa estranha... A voz, os braços o gogó... Você me enganou no escuro, mas aqui não me engana não...

Lúcia – Estou vestido assim, bom, porque... porque estava ensaiando uma peça de teatro e tive de sair correndo de casa por causa do incêndio... Agora preciso tirar isso aqui e colocar roupas de homem.

Mulher(exaltada) Ai, meu Deus, eu coloquei um homem dentro minha casa e eu aqui sozinha... Um depravado desses, um homem vestido de mulher! Deus me proteja!

Lúcia(aproxima-se tentando acalmá-la) Por favor, não é nada do que você está pensando... Eu só preciso trocar de roupa, depois eu vou embora.

Mulher(recuando) Não se aproxime de mim, seu tarado!

Lúcia (aproxima-se de Marlene tentando acalmá-la) Por favor, eu não vou fazer nada com você, só quero trocar de roupa.  

Mulher(histérica) Não chegue perto de mim. Que tipo de mulher você pensa que eu sou?

Lúcia – Fique calma. Eu só preciso da sua ajuda... (e aproxima-se novamente de Marlene)

Mulher(recuando) Se afasta de mim, seu maníaco. Se chegar mais perto, eu grito.

Lúcia(insistindo) Por favor, Marlene!

Mulher(começa a gritar ao mesmo tempo se afastando de Lúcia) SOCORRO! SOCORRO! TARADO, AQUI NO 26! SOCORRO! SOCORRO! (ela sai de cena e continua gritando em fora de cena) ELE ESTÁ ME ESTUPRANDO. SOCORRO! SOCORRO!

Lúcia – Não, não... Por favor...

Mulher (gretando) SOCORRO! TARADO! SOCORRO!

Lúcia coloca as mãos nos ouvidos, mas rapidamente se dá conta da situação.

Lúcia(desesperada) Não. Pare de gritar. Estou indo embora.

Lúcia começa a sair de cena, depois acelera o passo e sai rapidamente, enquanto Marlene continua chamando por socorro e sai pelo lado oposto.

 

 

 


 

                                                        CENA 10

 

Lúcia entra correndo em cena. Para um pouco ofegante e olha para trás. Ouve-se mais um grito de Marlene.

Marlene(fora de cena) SOCORRO! TARADO! PEGUEM!

Lúcia – Ai, meu Deus, como é difícil correr de salto alto... Acho melhor ficar descalço.

Ela tenta tirar um pé da sandália, mas antes que consiga, entra o Homem vestido como policial, com o revólver na mão. Lúcia se assusta.

Policial – O maníaco? Você viu alguma coisa, moça?

Lúcia(aflita) Sim, ele tentou me atacar também!

Policial – Como ele era, dona?

Lúcia(inventando) Era... alto, moreno e usava uma camisa... vermelha... Ele foi naquela direção (aponta).

Policial(saindo apressado) Pode deixar, eu pego esse miserável...

Lúcia – Ai, meu Deus!

“Lúcia desiste de tirar as sandálias e sai apressada pelo lado oposto ao que saiu o Policial”.

 

 

 

 


 

                                           CENA 11 – MONÓLOGO

 

Lúcia entra em cena apressada. Para um pouco ofegante no meio do palco e olha para trás.

Lúcia – Ai, meu Deus, tudo acontece comigo. Aquela louca deve estar gritando até agora. Como se eu quisesse fazer alguma coisa com ela. Eu, hein! Ela nem faz meu tipo. Quer dizer, ultimamente eu tenho mais inveja do que desejo pelas mulheres  Quando vejo uma mulher com um vestido bonito, logo imagino como ele ficaria em mim? (pausa, continua em outro tom) Eu só queria que ela me emprestasse umas roupas para eu trocar. (pausa, prossegue num outro tom) Vai ver que aquela louca só pensa em sexo. Deve ser isso. (olha a sua volta) Agora estou aqui de novo na rua vestido de mulher (fala como se falasse consigo mesma) É melhor eu me afastar daqui.  Vai que aquela louca colocou a polícia atrás de mim. É só o que faltava. (a sua volta) Vou ter que ir para longe do meu prédio, mas não tem importância, depois eu volto.

E vai saindo de cena, olhando de vez em quando para tara trás para ver se não vem alguém. Lúcia sai de cena pelo lado oposto ao que entrou. 

 


 

                                                           CENA 12

 

O cenário está vazio. Lúcia entra em cena e fica parada olhando para os lados. Entra em cena a Mulher vestida como prostituta, girando um bolsinha. Ela se aproxima de Lúcia, que não a vê.

Prostituta(a Lúcia) Ei, mina?!

Lúcia(assustada) Ai, que susto!

Prostituta – Você não pode ficar aqui?

Lúcia – Por que?

Prostituta – Aqui é meu ponto. Se manda, mina! Vai rodar bolsinha em outro lugar.

Lúcia(sorrindo) Ah, eu não trabalho nisso...

Prostituta – Ah, é? E por que a boneca está com esse vestidinho curto a essa hora na rua. Pensa que eu nasci ontem! (aproximando-se de Lúcia) Ei, você não é mulher, não! Você é uma traveca! De longe até que engana. Olha, as travestis não podem trabalhar aqui, só lá no fim da rua (aponta) Se manda traveca!

Lúcia(assustada) Eu não sou travesti, sou crossdresser

Prostituta – Cross o quê?

Lúcia – Crossdresser. Um homem que se veste de mulher. Mas não faço programa.

Prostituta(tocando Lúcia) Olha traveca, não vem jogando chaveco em cima de mim. Aqui é meu ponto! Se manda daqui e vai procurar a sua turma. (aponta) Lá no fim da rua.

Lúcia – (implorando) Por favor, eu preciso de ajuda. (pausa) Será que você não podia me arranjar umas roupas de homem para voltar para casa?

Prostituta – Deixa ver se eu entendi, traveca! Você que eu saia do meu ponto e vá procurar roupas de homem para você?

Lúcia – Isso.

Prostituta – Olha, traveca, hoje o movimento está fraco. Acho que vou poder quebrar o seu galho.

Lúcia(feliz) Ah, que bom!

Prostituta(estendendo a mão aberta) Joga cem contos na minha mão, que eu trago as roupas para você.

Lúcia (surpresa) Cem contos...

Prostituta – Vamos logo, que eu não tenho a noite toda! Vai que aparece algum cliente.

Lúcia(embaraçada) É... é... que eu tive de sair de casa às pressas...por causa do incêndio que aconteceu no meu prédio... Não deu para pegar dinheiro... (a Prostituta balança o pé ainda com a mão esticada, esperando) Mas amanhã eu te trago, sem falta. Você fica sempre aqui, não é?

Prostituta(dando alguns passos) Escuta, viado, eu não faço nada fiado. Tem que me pagar antes, senão não rola.

Lúcia(implorando) Eu pago amanhã, prometo!

Prostituta – Você está me achando com cara de trouxa, é? (grita) Se não tem dinheiro, se manda daqui, traveca. E vai rápido, senão eu chamo meu macho para te dar uma surra (grita). Osvaldo?! Osvaldo! Vem aqui. Tem uma traveca querendo roubar meu ponto!

Lúcia(assustada) Não, não, eu já estou indo.

“Lúcia sai de cena apressada”.

Prostituta(olhando para o lado que Lúcia saiu com os braços cruzados) A traveca safada querendo roubar meu ponto. Enquanto eu ia buscar as roupas ela ficava aqui rodando bolsinha. É só o que me faltava!

A Prostituta sai de cena lentamente, caminhando de forma provocante, enquanto gira a bolsinha.

 

 

 

 


 

CENA 13 - Monólogo

 

Lúcia entra em cena. Quando chega no meio do palco, para e olha para os lados.

Lúcia – Imagine se eu ia querer roubar o ponto daquela piranha! E a louca ainda me chamou de traveca. Vê se pode! Será que eu só encontro gente doida hoje... (olha para todos os lados em dúvida) Ai, que rua é essa? Acho que estou perdida... Vou pegar aquela viela para ver onde vai dar.

Lúcia sai de cena pelo lado oposto ao que entrou.


 

CENA 14

 

Lúcia entra em cena novamente, caminhando lentamente e olhando para os lados. O Estuprador (o Homem usando um sobretudo e uma toca-ninja) vem pelas costas de Lúcia e a agarra, tapando a boca dela com a mão.

Estuprador – (exultante) Ra, ra! Peguei você, gostosa! Não tente gritar nem fugir, porque vai ser pior para você. Agora você tem que fazer tudo o que eu mandar, senão eu vou te machucar.

Lúcia – (tentando se desvencilhar) Hummmm! Hummmmm!

Estuprador – Seja boazinha, gostosura! Assim, a gente acaba mais cedo.

Lúcia – (idem) Hummmmm! Hummmm!

Estuprador Ah, vai dar uma de bravinha?! Eu estou acostumado com essas também. Você não é a primeira que eu pego (ri).

Lúcia (idem) Hummmm! Hummmmm!

Estuprador – Vamos para aquele cantinho escuro, delícia! Eu vou fazer tudo o que eu quiser com você. No final, aposto que você vai gostar.

Ele começa a arrastar Lúcia, que resiste, para fora de cena. De repente, Lúcia acerta uma cotovelada no Estuprador. Ele grita de dor e solta Lúcia, levando as mãos ao estômago..

Estuprador – Ai, sua desgraçada!

Lúcia pega um dos braços do Estuprador e o torce. Ele se fica de costas para ela, totalmente dominado.

Estuprador(gemendo) Ai, você está me machucando.

Lúcia – Pensou que eu era mulher, mas eu sou homem.

Estuprador – Me solta, seu viado!

Lúcia (torcendo o braço dele) O que você disse?

Estuprador(grita de dor) Aiiiiiiiii! (dominado) Não, não foi isso que eu quis dizer, desculpe! (grita) Agora, me solta, está doendo!

Lúcia(torcendo o braço dele) Você precisa pedir com mais jeito.

Estuprador – Aí! Me solta, por favor. (choroso) Está doendo!

Lúcia – O que você ia fazer? Você ia me estuprar, não é verdade?

Estuprador(sentindo dor) Éééé... Eu pensei que você era mulher... Ai...

Lúcia – Mas eu sou homem. Agora sou eu quem vai comer você sou eu, viado (e abaixa a parte de trás da calça dele, deixando à mostra sua bunda).

Estuprador(gemendo) Ai.(pausa) Está bom, eu dou. Mas põe devagar, tá?

Lúcia(solta o Estuprador que trôpega e dá um chute na bunda dele) Sai daqui, seu traste. Não vou perder meu tempo comendo a sua bunda peluda.

O Estuprador foge rápida e tropegamente, levantando as calças.

 


 

                                                           CENA 15

 

Após a saída do Estuprador, Lúcia ajeita o vestido e passa a mão no pescoço onde o Estuprador a agarrou.

Lúcia – Desgraçado! Não pode ver uma mulher sozinha na rua e já vai querendo se aproveitar! Meu Deus, será que tudo vai acontecer comigo hoje.

O Homem após uma troca rápida de roupas entra apressado, agora vestido como Juarez.

Juarez – Moça, está tudo bem com você? Eu vi o que aconteceu pela janela do meu apartamento. Desci correndo para ajudar, mas você deu conta do desgraçado sozinha. Ele machucou você!

Lúcia – Não. Quer dizer, só um pouco.

Juarez – Como você é corajosa, moça!

Lúcia – Obrigada, eu ainda estou com as pernas tremendo.

Juarez – Esse tarado já atacou várias mulheres na região. Venha comigo. Você vai lá em casa, toma um copo d’água e eu faço um curativo em você.

Lúcia(indecisa) Não precisa...

Juarez – Não, venha comigo. É perigoso ficar aqui.

Lúcia vai saindo de cena amparada por Juarez.

Juarez – O que você está fazendo sozinha há essa hora?

Lúcia – Houve um incêndio no meu prédio e eu tive de sair às pressas.

Juarez – Eu ouvi os carros dos bombeiros passando.

Os dois saem de cena.


 

                                                             CENA 16

 

 O cenário é o apartamento de Juarez, com algumas cadeiras e outros objetos cênicos. Lúcia entra em cena, seguida por Juarez.

Juarez – Sente-se, Lúcia.

Lúcia(sentando-se) Obrigada, Juarez.

Juarez – Nossa, como você é bonita.

Lúcia – Olha, Juarez, você foi muito legal comigo, mas tem uma coisa que eu preciso te confessar. E não sou mulher, sou homem.

Juarez – Eu já tinha percebido que você não era mulher. Quer dizer, lá embaixo, no escuro fiquei em dúvida. Mas aqui...

Lúcia – Eu estava ensaiando para uma peça de teatro quando aconteceu o incêndio.

Juarez(sorrindo) Teatro? Bela desculpa. Já vi outros como você: homens que gostam de se vestir de mulher. Você realmente fica muito bonita montada!

Lúcia(sorrindo) O que é isso, Juarez. Obrigada! É a primeira vez que eu saio na rua vestida assim. Por causa do incêndio tive de sair de casa correndo, sem dinheiro, sem documentos, nada. E ainda nem jantei, estou morrendo de fome.

Juarez – Você está com fome? Eu acabei de fazer o jantar. Vem, você é minha convidada.

Lúcia – Ah, não, Juarez, não precisa se incomodar. Eu só quero trocar essas roupas e voltar para casa.

Juarez – As roupas eu te arranjo, mas primeiro você tem de jantar comigo. Senão vou ficar ofendido.

Lúcia(hesitante) Bom, já que você insiste...

Juarez(mostrando o caminho) Venha, Lúcia. A cozinha é por aqui. Já está tudo pronto.

Lúcia(levantando-se encabulada) Eu fico sem jeito...

Juarez(pega na mão de Lúcia) Não é todo dia que uma mulher tão linda vem ao meu apartamento!

Lúcia(sorrindo) Ah, Juarez!

Juarez(levando Lúcia pela mão para fora de cena) Vou abrir uma garrafa de vinho para nós.

 Os dois saem de cena.


 

                                            CENA 17 – MONÓLOGO

 

O cenário fica vazio, as luzes diminuem, mas aqui e ali focos se acendem e se apagam, enquanto é executada uma trilha sonora. Depois de um tempo as luzes voltam ao normal e o som da música para. Pelos objetos em cena percebe-se que ainda estamos no apartamento de Juarez.

Lúcia entra em cena, tímida e sem meio jeito. Ela vai até o centro de palco e fala dirigindo-se ao público.

Lúcia(meio sem jeito) Bem, aconteceu... Não sei o que deu em mim...  Eu nunca pensei que ia fazer, mas fiz... (pausa, confessa sem jeito) Eu dei para o Juarez!!! (pausa, continua em num outro tom) Sei lá, eu estava me sentindo tão feminina, tão frágil depois de tudo o que aconteceu esta noite... E Juarez foi tão gentil comigo, tão atencioso... Ele me tratou como mulher, mesmo sabendo que eu era homem. Disse que eu era linda... Conversamos, bebemos vinho, e ele me fez sentir tão desejada. Sei lá, pintou um clima, e eu não resisti... (pausa) Bom, eu não era totalmente virgem, vocês sabem, eu tenho um vibrador em casa. Quando me visto de mulher muitas vezes sinto um desejo irresistível de ser penetrada, para sentir o que as mulheres sentem quando transam... quer dizer, mais ou menos (sorri e continua num tom mais lânguido) O Juarez foi muito carinhoso comigo, sabia é era minha primeira vez com um homem de verdade... Foi um pouco difícil no começo, mas depois ficou bom... (empolga-se) Ficou muito bom! Ai, gente! Muito melhor do que com o vibrador. No final eu gozei como nunca tinha gozado na vida. Pela primeira vez eu me senti totalmente mulher, totalmente fêmea... (pausa) Até aqui me vestir de mulher era apenas uma fantasia entre quatro paredes, uma espécie de hobby. Agora a coisa ficou mais séria. Hoje Lúcia Cross deixou de ser virgem...

 


 

                                                          CENA 18

 

Juarez entra em cena usando uma toalha na cintura, aparentemente saindo do banho.

Juarez – Pronto, já estou novo em folha.

Lúcia – Eu preciso ir embora, Juarez. Você ficou de me emprestar umas roupas suas.

Juarez – Ah, claro, Lúcia. (aproximando-se de Lúcia) Você está tão linda assim, que dá até dó de pensar em você vestida de homem (tenta beijar o pescoço de Lúcia, que se afasta).

Lúcia – Por favor, Juarez, não. Preciso, para voltar para casa. Só me arranje as roupas, amanhã eu devolvo.

Juarez(aproximando-se novamente) Isso não é problema! Mas é ainda cedo, Lúcia. Nós podíamos brincar mais um pouco.

Lúcia(afastando-se) Não, Juarez, foi minha primeira vez, você sabe. Não estou a fim de transar de novo.

Juarez (amoroso) Ah, mas a gente podia fazer outras coisas. Você tem a boca tão linda... Podia fazer coisas maravilhosas com ela! (tenta beijar Lúcia que se desvencilha)

Lúcia – Ah, Juarez, não... (afastando-se) Quem sabe outro dia...


 

                                                        CENA 19

 

Neste instante ouve-se um barulho de gente batendo violentamente na porta.

Mulher(gritando de fora da cena) Abre, Juarez! Eu sei que você está com alguma mulher aí dentro. Abre!

Juarez(assustado) Ai, meu Deus, é minha mulher!

Lúcia – Mulher? Que mulher? Você não me falou que era casado!

Juarez(desesperado) Eu ia contar depois. Não deu tempo... (sem saber o que fazer) Meu Deus, e agora?! Minha mulher é louca de ciúmes! Ela me mata.

Ouvem-se novas batidas, agora mais violentas na porta e a voz da Esposa.

Esposa (gritando fora de cena) Abre, Juarez! Abre, desgraçado, senão vou arrombar porta.

Juarez(falando na direção da voz da mulher) Calma, amor. Já vou abrir.

Lúcia (nervosa) E agora? O que vamos fazer?

Juarez(desesperado) Ai, eu não sei. Ela tinha viajado para a casa da mãe, disse que só voltava amanhã. Meu Deus, ela é louca, totalmente louca!

De repente ouve-se o estrondo da porta de abrindo, e a mulher de Juarez entra em cena alucinada, com uma grande faca na mão.

Esposa – Juarez, seu desgraçado, é só eu virar as costas e você aproveita! Quem é essa sirigaita que você trouxe para minha casa!

Juarez (assustado) Por favor, Marilda, eu posso explicar. Eu só estava ajudando a moça. Ela quase foi estuprada.

Esposa – E essa toalha na sua cintura? Você não me engana mais com essas suas histórias! Não é a primeira vez que eu te pego, Juarez! Agora eu vou matar vocês dois.

A Mulher avança com a faca em riste na direção de Juarez, que apavorado se esquiva e foge. Depois ela parte para cima de Lúcia, que também se esquiva e foge para trás de Juarez. A mulher parte novamente para cima de Juarez.

Mulher – Você não escapa, desgraçado!

Juarez e Lúcia correm cada um para um lado e saem de cena por lados opostos. A Mulher olha rapidamente para os dois lados e sai correndo na direção por onde saiu Juarez.

Mulher (fora de cena) Eu te mato, Juarez!

 


 

                                            CENA 20 – MONÓLOGO

 

Lúcia entra correndo em cena, para assustada num canto do palco, e olha para trás.

Lúcia Ai, meu Deus, mais uma louca. Vocês viram o tamanho da faca dela. E o Juarez, a mulher é capaz matar ele. Coitado! (num outro tom) Coitado, nada! Bem feito! Quem manda ser galinha! Nem me falou que era casado. E ainda com uma louca daquelas. E ainda bem que ela não percebeu que eu era homem, senão era capaz de cortar fora o pau dele (ri). Nossa, descobrir que o marido está te traindo com outra mulher é uma coisa, descobrir que é com um homem vestido de mulher é muito pior. (ri, depois olha a sua volta) Vou ver se consigo voltar para casa. Meu prédio fica naquela direção (aponta).

Lúcia sai de cena pelo lado oposto ao que entrou.


 

                                                         CENA 21

 

O palco fica mais escuro. Barulho de trovões e de chuva. A Velha Mendiga já está em cena, acocorada atrás de algumas caixas de papelão. Ela usa roupas esfarrapadas e tem um grande lenço amarrado na cabeça, que quase não deixa ver seu rosto. Lúcia entra apressada, como se protegendo dos pingos da chuva. Ela aparentemente chega num ponto onde está abrigada, para e fica esfregando os braços.

Lúcia – Chuva: era só o que faltava para a noite ficar completa!

O som dos trovões e da chuva continua. Lúcia vai até o lado do palco onde está a Velha oculta atrás das caixas de papelão.

Velha (estendendo a mão aberta) Uma esmola, moça!

Lúcia(assustada, grita) Ai! Quem está aí?

Velha(idem) Uma esmola, por favor, moça!

Lúcia – Desculpe, senhora, eu estou sem dinheiro.

Velha – O que uma moça tão bonita está fazendo sozinha a essa hora da noite. Não vai me dizer que você é daquelas que roda bolsinha.

Lúcia – Nããão !  É que houve um incêndio no meu prédio... E eu tive de sair às pressas.

Velha – Você é casada?

Lúcia – Não. Ainda não...

Velha – Não vá me dizer que ainda é virgem?

Lúcia(sem jeito) Não. Não sou mais...(à parte) E foi bem recente...

Velha – E tem filhos?

Lúcia – Ah, não.

Velha – E por que não?

Lúcia(sem jeito) Sei lá, nunca pensei muito nisso, sabe?

Velha – Mas devia pensar. Tive meu primeiro filho com dezesseis anos, depois foi um atrás do outro. Tive oito ao todo. Tudo aí espalhado pelo mundo.

Lúcia (olhando em volta impaciente) Que beleza!

Velha – E tudo parto natural. Abria a perna e ia botando para fora, um atrás do outro (ela se levanta e se aproxima de Lúcia) Quanto você for ter filhos, não queira esse negócio de cesariana, não. Prefira o parto normal. Nada como sentir o filho saindo de dentro da gente.

Lúcia(sem graça) Eu vou lembrar do conselho.

Velha – E comigo não tinha essa coisa de mamadeira, não. Amamentei todos no peito. (Lúcia que não parece cada vez mais impaciente com a fala da Velha) Eu sempre tive muito leite... Até vazava na roupa.

Lúcia(estende a mão para frente para sentir os pingos da chuva) Ah, a chuva já está diminuindo. (à Velha) Já vou indo. Adeus, senhora!

 

Lúcia sai apressada pelo outro lado do palco, ainda fugisse dos últimos pingos da chuva.

Velha (acenando) Adeus! (sacode a cabeça) Essa mulherada hoje em dia só quer vida fácil.

A Velha também sai de cena.


 

                                                         CENA 22

 

O cenário está vazio. Lúcia entra parecendo exausta. Ela cruza o palco até perto da coxia. Faz gesto com o dedo e ouve-se um som de campainha. Ela tem de tocar três vezes para ser atendida. Por fim entra a Sindica com o mesmo pegnoir e os bobs na cabeça.

Síndica – Seu, Gilberto, senhor demorou a voltar! O fogo foi controlado faz tempo. Felizmente ficou só no primeiro andar, seu apartamento não foi atingido. E já consertamos sua porta. (entrega duas chaves atadas para Gilberto) Estas são as chaves novas.

Lúcia – O brigado, Dona Romilda.

Mulher(sorrindo maliciosa) Como foi o seu ensaio da peça de teatro... Como foi?

Lúcia – (afastando-se) Foi bom...

“Lúcia sai de cena sob o olhar atento da Síndica”.

Síndica(torcendo os lábios e como se falasse consigo mesma) Teatro, teatro... Teatro é desculpa para tudo. Pouca vergonha, isso sim! (pausa e vai saindo de cena) E Seu Gilberto parecia uma pessoa tão direita. Quem diria! (e sai de cena)


 

CENA 23

 

Lúcia entra novamente. Ela tem as chaves na mão. Começa a atravessar o palco, mas é barrada pelo vizinho Geraldo, de camiseta regata e cigarro no canto da boca, que vem pelo lado oposto..

Geraldo – Oi, Gilberto! Voltou tarde, hein?

Lúcia(contrariada) Oi, Geraldo. Estou cansado.

Geraldo – O incêndio terminou faz tempo! (avança alguns passos em cena, e se coloca entre Gilberto e a porta do apartamento) Onde você esteve esse tempo todo vestido de mulher?

Lúcia(tentando passar) Não é da sua conta.

Geraldo(ofendido) Nossa, não precisa ficar desse jeito! Eu quero ser seu amigo.

Lúcia – Uma outra hora, Geraldo (tenta passar, mas Geraldo bloqueia sua passagem).

Gerado – (insinuante) Sabe, Gilberto, quando eu vi você vestido assim... Achei legal... Você fica muito bem vestido de mulher... (pausa) Você sabe, eu não sou viado, não ! Sou homem, muito homem... O meu negócio é mulher.

Lúcia – Que bom, Geraldo. Você faz um belo par com a síndica, Dona Romilda.

Geraldo – Não, não estou mais com ela. Nós brigamos. Aquela mulher é uma louca! Morre de ciúme de mim, acha que eu dou em cima de tudo o que é mulher. Até de você ela ficou com ciúme...

Lúcia – Fale para ela que de mim ela não precisa ter ciúmes.

Geraldo(bloqueando a passagem de Lúcia com o braço) Você não quer vir um pouco aqui no meu apartamento. A gente não precisa fazer nada. (aproxima-se bem de Lúcia) Só para a gente conversar, se conhecer melhor...

Lúcia(desvencilhando-se) Eu não estou a fim... (faz um gesto como se destrancasse sua porta e sai de cena).

Geraldo(ofendido, fala em voz alta) Olha, você não está com tudo isso não! Nem mulher você é! (pausa, fica olhando na direção em que Lúcia saiu, depois fala como se falasse consigo) Não é que o viadinho fica gostoso vestido de mulher! (ele coça o pênis e sai de cena).

 

 


 

                                            CENA 24 - MONÓLOGO

 

Lúcia entra novamente em cena. De novo vê-se o espelho no tripé e a cadeira, indicando que está de volta ao apartamento..

Lúcia(após um suspiro) Enfim de volta em casa (depois de uma pausa ela olha para si mesma) Lúcia, você deve estar um lixo. (ela e vai para frente do espelho) Amarrotada, despenteada, a maquiagem borrada (ajeita o cabelo e se olha novamente).  Bom, até que não está tão mal assim... meio selvagem... meio punk... (ri, depois se afasta do espelho) Nossa, que noite!

Lúcia senta-se na cadeira exausta, esparramada, sem se preocupar em fechar as pernas.

Lúcia(começa a tirar as sandálias) Esses sapatos estão me matando. Como que mulher consegue ficar o dia todo com essa coisa nos pés? (massageando os pés) Amanhã vou começar a procurar um novo apartamento onde ninguém me conheça. E ainda esse traste do Geraldo resolveu dar em cima de mim... É só o que faltava.

Lúcia levanta-se e tira o vestido, ficando novamente apenas de lingerie, calcinha, sutiã e meia-calça. Aproxima-se do espelho e olha-se, de frente, de perfil e pelas costas, depois volta a ficar de frente. Fica em silêncio por alguns instantes.

  Lúcia Enfim todas as calcinhas, os sutiãs, as meias, as cintas-ligas e as roupinhas sensuais que eu vestia para ficar eu me admirando no espelho, acabaram cobrando o seu preço. Lúcia Cross, depois desta noite, sua vida não mais vai ser a mesma!

 

 

FIM

 

 

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