LÚCIA CROSS
Peça de teatro de Lúcia Millet
(pseudônimo)
Esta peça
pode ser encenada sem pagamento de direitos autorais, bastando a autorização da
autora. O texto com outro título e assinado com o nome real do autor está
registrado na Biblioteca Nacional.
PERSONAGENS
São
necessários três atores para a encenação, dois homens e uma mulher.
Lúcia Cross – rapaz de aproximadamente 25 anos com traços
delicados e cabelos naturais (não deve usar peruca) e que possa passar
relativamente bem por uma mulher quando vestido e maquiado.
Homem – aproximadamente 30 anos que fará vários papéis
masculinos com trocas rápidas de roupas e adereços: Bombeiro, Vizinho Geraldo,
Transeunte, Policial, Estuprador, Juarez.
Mulher – aproximadamente 30 anos que fará vários papéis
femininos com trocas rápidas de roupas e de adereços: Síndica, Transeunte
Amiga, Prostituta, Esposa de Juarez, Velha Mendiga.
CENÁRIO
O
cenário é vazio com um ou outro objeto cênico para a ambientação. No
apartamento de Lúcia há apenas um espelho num tripé e uma cadeira, no
apartamento da Amiga e no de Juarez, há duas cadeiras, talvez um quadro, uma
mesinha com um abajur para marcar a diferença. Nas cenas de rua não há objeto
cênico nenhum.
CENA
1
O
cenário representa o apartamento de Lúcia. Há apenas um espelho apoiado num
tripé e uma cadeira.
Lúcia entra
em cena maquiada, com os cabelos (naturais) arranjados para ficarem mais
femininos. Ela veste calcinha fio-dental, sutiã com enchimento e meia-calça
semitransparente. Nas mãos traz um vestido e um par de sapatos de salto. Lúcia
deixa os sapatos e o vestido sobre a cadeira e vai até o espelho. Ela se olha
longamente, de frente, de perfil e de costas.
Lúcia – (admirando
sua bunda)
Ummmm... Belo bumbum, hein, menina?
Depois ela
se senta na cadeira e admira suas pernas, passando as mãos.
Lúcia – (ri, depois)
O pessoal do serviço me convidou para jogar futebol neste fim de semana. Eu
disse que não podia, estava ocupado. Imagina aparecer lá com as pernas
depiladas. E ainda levar umas caneladas, ficar cheia de marcas roxas... Tô
fora! (alisa as pernas). Linda esta meia-calça (pausa) Gosto mesmo das meias 7/8,
presas com cinta-liga. Acho tão sexy!
(suspira) Ah, como essas coisas podem sair de moda!
Lúcia
volta a ficar em pé. Ela ajeita a
calcinha.
Lúcia – A
calcinha bem apertada para esconder o piu-piu. Quer dizer, esconder não
esconde, mas disfarça... Tem algumas crossdressers que fazem “tucking” para
esconder o pênis. Enfiam, esticam e colam o coitado... (balança a cabeça)
Deve incomodar pra caramba! Prefiro deixar ele assim solto (sorri). Só
não dá para usar saias justas, leggings, shortinhos, essas coisas... (pausa,
continua em outro tom) Faz algum tempo comecei a me depilar. Sei lá,
lingerie não combinava com os pelos. Felizmente eu nunca fui muito peludo. Primeiro
foram as pernas, que ficaram maravilhosas, bem lisinhas, depois a bunda, o
peito, braços, tudo. Agora eu não consigo me imaginar com pelos novamente, assim
que começam a crescer eu corto tudo um aparelho elétrico... (passa as mãos
pelas pernas)
Lúcia
vai até a cadeira pega o vestido e começa a vesti-lo. É um vestido preto curto
de malha, mais justo na parte de cima e rodado na parte da saia, com pouco
decote e de mangas cumpridas. Depois de se vestir, Lúcia se aproxima do
espelho.
Lúcia – (admirando-se
diante do espelho enquanto ajeita o vestido sobre o corpo) Hummm! Até que enfim um
vestidinho mais comportado, hein, menina! Ultimamente você estava parecendo uma
vadia, só usava roupas de puta! (ri, pausa, continua em outro tom) Não dá para usar muito decote
senão vai aparecer o enchimento do sutiã. E mangas cumpridas para esconder os
braços de homem. (dá um suspiro) Fazer o que, a gente precisa fazer alguns sacrifícios
para ser mulher! (ajeita os cabelos) Ainda
bem que não preciso usar peruca, é só dar uma ajeitada nos cabelos e eles ficam
bem femininos (sorri).
Lúcia senta-se
na cadeira, pega o par de sapatos.
Lúcia – Agora,
vamos lá, sapatinhos!
Calça os sapatos
femininos e admira os pés.
Lúcia – (torce a cara) Esses aqui não são muito altos,
saltos largos. Eu queria mesmo usar um daqueles de salto doze, tipo agulha... (suspira) O
problema é conseguir parar em cima deles (ri), e conseguir andar com aquela
elegância das mulheres. Quem sabe um dia chego lá. (olha os sapatos) Com
esses acho que vai ser mais fácil.
Lúcia levanta-se
e dá alguns passos. Depois se aproxima novamente do espelho.
Lúcia – Hummm! Moleza.
Ela
caminha de um lado para outro cada vez com mais segurança.
Lúcia – É
isso aí, menina, está vendo, não é tão difícil assim. É só uma questão de
treino. (pausa) Eu
comecei tarde, as mulheres treinam desde meninas! (pausa, caminha) Saltos
doze agulha, me aguardem!
Caminha
mais um pouco de um lado para outro. Depois para diante do espelho para se
admirar. Ajeita os cabelos.
Lúcia – Lúcia, hoje você está linda. (ri
satisfeita).
CENA 2 – MONÓLOGO
Há uma
mudança na iluminação do palco. O fundo fica escuro enquanto um facho de luz se
projeta sobre Lúcia. Ela começa a falar dirigindo-se ao público.
Lúcia – Eu não sei direito por quê faço isso. Começou bem
cedo, quando eu tinha meus dez, onze anos...
Sentia grande excitação quando vestia roupas de mulher, principalmente
lingerie... Tenho uma irmã dois anos mais velha. Quando ficava sozinho em casa
vestia as calcinhas dela e corria para me olhar no grande espelho do guarda-roupa.
Ficava louco de tesão. Depois batia uma ainda vestindo a calcinha. Esse costume
continuou comigo, umas épocas mais outras menos... Mas acho que ficou forte
mesmo quando comecei a morar sozinho, com liberdade para me vestir como quiser
em casa. (muda de tom) Eu? (pausa) Bom, eu sou Gilberto, 26 anos,
solteiro, técnico de contabilidade. Não tenho amigos, só conhecidos e colegas
de trabalho. Já namorei umas vezes, mas não deu muito certo, acho que não tenho
muito jeito com as mulheres. Mas não sou gay, quer dizer, pelo menos não sinto
atração por homens. Só gosto de me vestir de mulher, de me sentir mulher... É
uma espécie de hobby, não tem nada demais. (pausa) Todo dia quando chego
em casa do trabalho, tiro minhas roupas e me visto de mulher. Então me
transformo em Lúcia Cross, que é como me conhecem na Internet. Lúcia Cross é
famosa na rede, tem muitos de amigos e milhares de seguidores. Todos dizem que
fico perfeita quando me visto de mulher e me maquio. Recebo muitas cantadas dos
TLovers, aqueles homens que sentem tesão pelas crossdressers e pelas transexuais.
Mas não dou bola para eles e até excluo os mais insistentes.
Lúcia – E o que eu faço depois de me vestir? (pausa, continua
num tom mais sombrio) Bom, eu fico aqui em casa, navego na Internet, tiro
fotos para postar. (faz um muxoxo) Sou uma travesti de closet, de
armário como chamam... Nunca tive coragem de sair de casa vestido de mulher e
acho que nunca vou ter... Há crossdressers
que se reúnem, todas montadas, e até saem juntas nas baladas. Já me convidaram,
mas não tive coragem... (sorri). Sei lá, acho que não ia me sentir bem. (pausa)
Lúcia Cross vai continuar entre quatro paredes.
Lúcia volta
a se admirar de si no espelho de vários ângulos, faz algumas poses, caras e
bocas. Depois ela sai de cena e logo começa um som de música dançante, como se ela
tivesse ligado um aparelho de som. Lúcia retorna já ensaiando alguns passos de
dança. Nas mãos traz uma garrafa de vinho e um copo pela metade. Bebe um gole
antes de depositar a garrafa e o copo sobre a cadeira.
Lúcia – (olha-se espelho) Mais tarde vou fazer umas fotos para postar. Hoje
você está demais, menina! Vamos ver quantas curtidas e comentários vou receber.
(ri, continua em outro tom) Mas agora é a hora da festa! Uuuu!
Lúcia volta a dançar, dá voltas, rebola, parece
totalmente à vontade com os sapatos femininos. Ela interrompe a dança uma vez para tomar
mais um gole de vinho. Algumas vezes Lúcia sai de cena e quando ela volta já
toca uma outra música, para marcar a passagem do tempo. Enche o copo mais uma
vez e bebe antes de voltar a dançar.
Lúcia – (levantando o copo para o alto) As garotas só querem se divertir...
Canta
e dança ao som da música “The Girls Just Want Have Fun”
CENA 3
Lúcia
escuta grandes pancadas a porta.
Voz fora
de cena –
Abra. Emergência
Lúcia
corre e desliga o som.
Lúcia – (assustada, grita) O que é isso? Quem
está aí?
Voz fora
de cena – É o bombeiro. Tem um incêndio
no prédio.
Lúcia anda de um lado para outro, desesperada.
Lúcia - (gritando em direção à porta) Incêndio. Espere. Já vou (ela fica
indecisa, não sabe para onde ir) Ai, meu Deus!
De
repente ouve-se um grande estrondo. Entra em cena um homem, vestindo uniforme de
bombeiro, aparentemente depois de arrombar a porta.
Bombeiro –
(fala exaltado) Você tem de sair daqui agora, moça!!! O prédio está
pegando fogo.
Lúcia – (assustada) Fogo. Ai, meu Deus!
Bombeiro –
(puxando Lúcia para fora) Vamos, não há tempo a perder!
Lúcia – (assustada) Mas eu não posso sair vestido
assim!
Bombeiro –
(exaltado) Não é hora para vaidade, moça. Vamos sair daqui agora!
O
Bombeiro arrasta Lúcia com ele para fora do palco pelo mesmo lado em que ele
entrou.
Lúcia – (debatendo-se) Mas eu não posso! (fora de cena) Não, por favor!
CENA 4
Entra em
cena a Síndica com lenço e bobs na cabeça, um roupão.
Síndica – (agitada) Vamos lá, gente, todos lá
fora! (pausa) Onde está o Seu Gilberto do 42?
Só está faltando ele!
Entra o Vizinho em cena por detrás da síndica.
Vizinho – O
bombeiro já subiu para tirar ele de lá (beijando
o pescoço da síndica) Vamos, docinho, vamos sair! Está perigoso aqui.
Síndica – (desvencilhando-se)
Para, Geraldo! Isso lá é hora disso! Ainda falta o Seu Gilberto do 42 descer.
Só saio daqui depois que ele sair.
Vizinho – Ele
que se dane.
Síndica – Não, Geraldo. (bombástica) O síndico tem de
ser sempre o último a abandonar o prédio, como o capitão do navio.
Vizinho – (recuando) Desculpe, amorzinho, não sabia! (aponta) Tem uma moça vindo lá.
Entra em cena Lúcia
assustada, olhando para os lados e para trás.
Síndica – (aproximando-se
de Lúcia) Moça, em que apartamento você estava? (recua surpresa) Seu Gilberto, é o senhor?
Lúcia – É sou eu, Dona Gisela. Ah! Estou vestido assim
porque... porque estava ensaiando uma peça de teatro.
Síndica – (olhando Lúcia
de cima a baixo, irônica) Teatro, é?
Vizinho – (admirando
Lúcia) Não sabia que você
era ator, Gilberto.
Lúcia – Ator, amador. Só de passatempo...
Vizinho – (observando
Lúcia) Gilberto, até que você engana bem vestido assim (comendo Lúcia com os olhos). Ele tem as pernas bonitas e um bumbum
empinado!
Síndica – (irritada)
Geraldo, o que é isso?! Você me respeite! Não sabia que gostava dessas coisas!
Vizinho – (desculpando-se)
Não, amor! Eu só estava reparando. Eu gosto mesmo de mulher, você sabe?
Síndica – (autoritária)
Agora, chega de conversa! Temos
que sair daqui senão vamos morrer todos queimados! (indicando a saída)
Por ali, rápido. Eu vou atrás de vocês.
“Os três saem de cena apressados, Lúcia, Geraldo e finalmente a Síndica”.
CENA 5 –
MONÓLOGO
Efeito
de luzes de giroflex, som de sirenes, ruídos diversos. Lúcia entra em cena,
assustada, olhando para todos os lados”.
Lúcia – Meu Deus, não estou acreditando. Estou aqui estou
eu na rua e vestido de mulher. Meu maior pesadelo se tornou realidade! E agora,
o que vou fazer? Já pensou se passa alguém do meu trabalho e vê vestido
assim... Eu ia ter que pedir demissão, não ia ter poder de ir lá novamente...
Quer dizer, muitas vezes eu ia trabalhar usando calcinha e sutiã debaixo do
terno, mas era um segredo meu, ninguém ficava sabendo. Agora aqui (olha a
sua volta) No prédio é mais fácil, amanhã mesmo começo a procurar outro
apartamento para alugar. Tomara que esse incêndio acabe logo para eu poder
voltar.
CENA 6
O Homem e a Mulher entram em cena, com outras roupas,
como transeuntes curiosos.
Homem – (olhando para cima) O que está
acontecendo!
Mulher – (idem) Acho que alguém está querendo se
atirar.
Homem – De
onde?
Mulher – Ouvi
dizer que é de uma daquelas janelas ali (aponta).
Homem – (a Lúcia) Você sabe de alguma coisa,
moça?
Mulher – (dirigindo-se a Lúcia) Moça?
Lúcia – (embaraçada) Quem? Eu?
Mulher –
É, você!
Lúcia – É um
princípio de incêndio no prédio!
Homem –
Dizem que morreram uns três.
Mulher –
Ouvi dizer que uma mulher se atirou pela janela para não morrer queimada.
“Ouve-se uma voz de alto falante”.
Voz no megafone – Por favor, afastem-se todos! O prédio pode desabar!
Mulher –
Meu Deus, o prédio vai cair.
Homem – Vamos sair daqui.
O Homem e a Mulher começam a sair de cena. Lúcia fica
onde está.
Mulher – É
melhor a gente ficar assistindo do outro lado da rua.
Homem –
Pode ser que mais alguém se atire pela janela.
Mulher – (a Lúcia) Vamos, moça. Aqui está perigoso.
Lúcia – Já vou.
O Homem, a Mulher e Lúcia saem de cena juntos.
CENA 7 – MONÓLOGO
A
mesma ambientação da cena anterior. Luzes de giroflex, barulho de sirene, só
que num tom mais baixo. Lúcia entra em cena assustada, olhando para os lados.
Lúcia – (sozinha em
cena Lúcia fala em tom de monólogo) Pelo menos as pessoas estão me tratando
como mulher. Sempre disseram na Internet que eu era passável, quer dizer,
conseguiria enganar bem como mulher. Com a síndica e o meu vizinho Geraldo não
deu certo porque eles já me conheciam, mas com os estranhos... Melhor assim,
imagine se todo mundo ficasse reparando: lá vai um homem vestido de mulher!
CENA 8
A
Mulher (a mesma da cena anterior) entra e aproxima-se de Lúcia.
Mulher – (a Lúcia) Querida, vamos ficar vendo o
incêndio daqui. É mais seguro. (pausa)
Você não está com frio esse vestidinho.
Lúcia – É... estou... É que eu ia a uma festa. De repente deram
o aviso de fogo e tive de sair correndo.
Mulher – Você mora naquele prédio? Ai, meu Deus, coitadinha!
Lúcia – Minhas coisas ficaram todas lá, dinheiro,
documentos, tudo... Só saí com a roupa do corpo.
Mulher – (passando a
mão no braço de Lúcia) Você está gelada! Olha, eu moro aqui pertinho. Vamos
até meu apartamento e eu te empresto uma blusa.
Lúcia – (temerosa)
Acho melhor ficar por aqui, não deve ser nada sério. Daqui a pouco vou poder voltar
para meu apartamento.
Mulher – Não, os bombeiros vão demorar para terminar.
Talvez você nem possa voltar para casa hoje.
Lúcia
– (assustada) Será?
Mulher – Se você precisar, pode até dormir na minha em
casa.
Lúcia – (hesitante) É...
Eu... precisava voltar para o meu apartamento para trocar de roupa.
Mulher – Eu te empresto outra roupa. Olha, querida, você
vai lá em casa comigo, senta um pouco, come alguma coisa, toma um café... É
melhor do que ficar aqui na rua nessa friagem. Você já está até um pouco rouca.
Lúcia – Verdade?
(ainda resistindo) É que eu não
queria incomodar.
Mulher – Não
é incômodo nenhum. A gente tem de ajudar uma a outra, não é verdade? (indicando
o caminho) Vamos, eu moro logo ali...
As duas
começam a sair de cena.
Mulher –
Qual o seu nome?
Lúcia –
É... é... Lúcia.
Mulher – E
eu me chamo Marlene. (vai saindo de cena)
Em que você trabalha, Lúcia.
Lúcia – (também
saindo atrás de Marlene) Eu...eu...sou... contadora...
Lúcia também sai de cena.
CENA 9
Lúcia
e a Mulher em cena. No cenário há duas cadeiras e alguns objetos decorativos.
Mulher – Fique à vontade, Lúcia. Sente-se.
Lúcia – Obrigado... Não quero incomodar...
Mulher – Não se preocupe, eu moro sozinha. Se precisar
dormir aqui, não tem problema.
Lúcia – Acho que não vai ser preciso.
Mulher – Vamos, sente-se !
Lúcia
finalmente senta-se desajeitadamente, passando as mãos na pare de atrás da saia.
Fica com as pernas abertas, depois se lembra de cruzá-las”.
Mulher – Só agora que estamos no claro
que estou reparando, você está toda maquiada...
Lúcia – (embaraçada)
É... Eu... ia sair... Ia numa festa de aniversário... Quando aconteceu...
Mulher – Posso fazer alguma coisa pra você se sentir
melhor?
Lúcia
– Bem... Se você tivesse uma roupa
mais discreta para me emprestar. E uns sapatos baixos.
Mulher – Eu tenho um vestido da minha prima que vai dar
certinho em você, Lúcia.
Lúcia – Eu... eu preferia uma calça comprida e uma
camiseta, um tênis velho.
Mulher – Que número você calça?
Lúcia – 40.
Mulher – Nossa, como você tem os pés grandes, Lúcia! Eu
calço 36.
Lúcia – Não tem importância que fique um pouco apertado...
Mulher – (repara
melhor em Lúcia e começa a ficar desconfiada) Minhas blusas também não vão
caber em você, tem ombros largos. E as calças iam ficar curtas, você é mais
alta.
Lúcia – Escuta, Marlene, você foi muito legal comigo, vou
ser sincera com você. Na verdade eu não sou mulher, sou um homem.
Mulher – (afastando-se
assustada) Ai, meu Deus... Eu bem que achei alguma coisa estranha... A voz,
os braços o gogó... Você me enganou no escuro, mas aqui não me engana não...
Lúcia – Estou vestido assim, bom, porque... porque estava
ensaiando uma peça de teatro e tive de sair correndo de casa por causa do
incêndio... Agora preciso tirar isso aqui e colocar roupas de homem.
Mulher – (exaltada) Ai, meu Deus, eu coloquei um
homem dentro minha casa e eu aqui sozinha... Um depravado desses, um homem
vestido de mulher! Deus me proteja!
Lúcia – (aproxima-se
tentando acalmá-la) Por favor, não é nada do que você está pensando... Eu
só preciso trocar de roupa, depois eu vou embora.
Mulher – (recuando) Não se aproxime de mim, seu tarado!
Lúcia – (aproxima-se de Marlene tentando acalmá-la)
Por favor, eu não vou fazer nada com você, só quero trocar de roupa.
Mulher – (histérica)
Não chegue perto de mim. Que tipo de mulher você pensa que eu sou?
Lúcia – Fique calma. Eu só preciso da sua ajuda... (e
aproxima-se novamente de Marlene)
Mulher – (recuando) Se afasta de mim, seu maníaco. Se
chegar mais perto, eu grito.
Lúcia – (insistindo) Por favor, Marlene!
Mulher – (começa a gritar ao mesmo tempo se afastando de
Lúcia) SOCORRO! SOCORRO! TARADO, AQUI NO 26! SOCORRO! SOCORRO! (ela sai
de cena e continua gritando em fora de cena) ELE ESTÁ ME ESTUPRANDO. SOCORRO!
SOCORRO!
Lúcia – Não, não... Por favor...
Mulher – (gretando) SOCORRO! TARADO! SOCORRO!
Lúcia coloca as mãos nos ouvidos,
mas rapidamente se dá conta da situação.
Lúcia – (desesperada)
Não. Pare de gritar. Estou indo embora.
Lúcia começa a sair de cena, depois
acelera o passo e sai rapidamente, enquanto Marlene continua chamando por
socorro e sai pelo lado oposto.
CENA 10
Lúcia entra correndo em cena. Para um pouco ofegante
e olha para trás. Ouve-se mais um grito de Marlene.
Marlene – (fora de
cena) SOCORRO!
TARADO! PEGUEM!
Lúcia – Ai, meu Deus, como é difícil correr de salto
alto... Acho melhor ficar descalço.
Ela
tenta tirar um pé da sandália, mas antes que consiga, entra o Homem vestido
como policial, com o revólver na mão. Lúcia se assusta.
Policial – O maníaco? Você viu alguma coisa, moça?
Lúcia – (aflita) Sim, ele tentou me atacar também!
Policial – Como ele era, dona?
Lúcia – (inventando) Era... alto, moreno e usava
uma camisa... vermelha... Ele foi naquela direção (aponta).
Policial –
(saindo apressado) Pode deixar, eu
pego esse miserável...
Lúcia – Ai, meu Deus!
“Lúcia desiste de tirar as sandálias e sai apressada
pelo lado oposto ao que saiu o Policial”.
CENA 11 – MONÓLOGO
Lúcia
entra em cena apressada. Para um pouco ofegante no meio do palco e olha para
trás.
Lúcia – Ai, meu Deus, tudo acontece comigo. Aquela louca deve
estar gritando até agora. Como se eu quisesse fazer alguma coisa com ela. Eu,
hein! Ela nem faz meu tipo. Quer dizer, ultimamente eu tenho mais inveja do que
desejo pelas mulheres Quando vejo uma
mulher com um vestido bonito, logo imagino como ele ficaria em mim? (pausa,
continua em outro tom) Eu só queria que ela me emprestasse umas roupas para
eu trocar. (pausa, prossegue num outro
tom) Vai ver que aquela louca só pensa em sexo. Deve ser isso. (olha a
sua volta) Agora estou aqui de novo na rua vestido de mulher (fala como
se falasse consigo mesma) É melhor eu me afastar daqui. Vai que aquela louca colocou a polícia atrás
de mim. É só o que faltava. (a sua volta) Vou ter que ir para longe do
meu prédio, mas não tem importância, depois eu volto.
E vai saindo de cena, olhando de vez
em quando para tara trás para ver se não vem alguém. Lúcia sai de cena pelo
lado oposto ao que entrou.
CENA 12
O
cenário está vazio. Lúcia entra em cena e fica parada olhando para os lados.
Entra em cena a Mulher vestida como prostituta, girando um bolsinha. Ela se
aproxima de Lúcia, que não a vê.
Prostituta – (a Lúcia)
Ei, mina?!
Lúcia – (assustada)
Ai, que susto!
Prostituta – Você não pode ficar aqui?
Lúcia – Por que?
Prostituta – Aqui é meu ponto. Se manda, mina! Vai rodar
bolsinha em outro lugar.
Lúcia – (sorrindo)
Ah, eu não trabalho nisso...
Prostituta – Ah, é? E por que a boneca está com esse vestidinho
curto a essa hora na rua. Pensa que eu nasci ontem! (aproximando-se de Lúcia) Ei,
você não é mulher, não! Você é uma traveca! De longe até que engana. Olha,
as travestis não podem trabalhar aqui, só lá no fim da rua (aponta) Se
manda traveca!
Lúcia – (assustada)
Eu não sou travesti, sou crossdresser
Prostituta – Cross o quê?
Lúcia – Crossdresser. Um homem que se veste de mulher. Mas
não faço programa.
Prostituta – (tocando
Lúcia) Olha traveca, não vem
jogando chaveco em cima de mim. Aqui é meu ponto! Se manda daqui e vai
procurar a sua turma. (aponta) Lá no fim da rua.
Lúcia – (implorando) Por favor, eu preciso de
ajuda. (pausa) Será que você não podia me arranjar umas roupas de homem para voltar
para casa?
Prostituta
– Deixa ver se eu entendi, traveca!
Você que eu saia do meu ponto e vá procurar roupas de homem para você?
Lúcia
– Isso.
Prostituta – Olha, traveca, hoje o movimento está fraco. Acho
que vou poder quebrar o seu galho.
Lúcia – (feliz)
Ah, que bom!
Prostituta – (estendendo
a mão aberta) Joga cem contos na minha mão, que eu trago as roupas para
você.
Lúcia
– (surpresa) Cem contos...
Prostituta – Vamos logo, que eu não tenho a noite toda! Vai que
aparece algum cliente.
Lúcia – (embaraçada)
É... é... que eu tive de sair de casa às pressas...por causa do incêndio que
aconteceu no meu prédio... Não deu para pegar dinheiro... (a Prostituta balança o pé ainda com a mão esticada, esperando) Mas
amanhã eu te trago, sem falta. Você fica sempre aqui, não é?
Prostituta – (dando
alguns passos) Escuta, viado, eu não faço nada fiado. Tem que me pagar
antes, senão não rola.
Lúcia – (implorando) Eu pago amanhã, prometo!
Prostituta – Você está me achando com cara de trouxa, é? (grita) Se não tem dinheiro, se manda
daqui, traveca. E vai rápido, senão eu chamo meu macho para te dar uma surra (grita). Osvaldo?! Osvaldo! Vem aqui. Tem
uma traveca querendo roubar meu ponto!
Lúcia – (assustada) Não, não, eu já estou indo.
“Lúcia
sai de cena apressada”.
Prostituta – (olhando para o lado que Lúcia saiu com os
braços cruzados) A traveca safada querendo roubar meu ponto. Enquanto eu ia
buscar as roupas ela ficava aqui rodando bolsinha. É só o que me faltava!
A Prostituta sai de cena lentamente,
caminhando de forma provocante, enquanto gira a bolsinha.
CENA 13 - Monólogo
Lúcia
entra em cena. Quando chega no meio do palco, para e olha para os lados.
Lúcia – Imagine se eu ia querer roubar o ponto daquela
piranha! E a louca ainda me chamou de traveca. Vê se pode! Será que eu só
encontro gente doida hoje... (olha para todos os lados em dúvida) Ai,
que rua é essa? Acho que estou perdida... Vou pegar aquela viela para ver onde
vai dar.
Lúcia sai de cena pelo lado oposto
ao que entrou.
CENA 14
Lúcia
entra em cena novamente, caminhando lentamente e olhando para os lados. O
Estuprador (o Homem usando um sobretudo e uma toca-ninja) vem pelas costas de
Lúcia e a agarra, tapando a boca dela com a mão.
Estuprador – (exultante) Ra, ra! Peguei você, gostosa! Não tente gritar nem fugir,
porque vai ser pior para você. Agora você tem que fazer tudo o que eu mandar,
senão eu vou te machucar.
Lúcia – (tentando
se desvencilhar) Hummmm! Hummmmm!
Estuprador
– Seja boazinha, gostosura! Assim, a gente acaba mais cedo.
Lúcia – (idem) Hummmmm! Hummmm!
Estuprador
– Ah, vai dar uma de bravinha?! Eu
estou acostumado com essas também. Você não é a primeira que eu pego (ri).
Lúcia – (idem) Hummmm! Hummmmm!
Estuprador –
Vamos para aquele cantinho escuro, delícia! Eu vou fazer tudo o que eu quiser
com você. No final, aposto que você vai gostar.
Ele começa a arrastar Lúcia, que resiste, para fora
de cena. De repente, Lúcia acerta uma cotovelada no Estuprador. Ele grita de
dor e solta Lúcia, levando as mãos ao estômago..
Estuprador – Ai, sua desgraçada!
Lúcia pega um dos braços do Estuprador e o torce. Ele
se fica de costas para ela, totalmente dominado.
Estuprador
– (gemendo) Ai, você está me machucando.
Lúcia – Pensou
que eu era mulher, mas eu sou homem.
Estuprador
– Me solta, seu viado!
Lúcia – (torcendo o braço dele) O que você
disse?
Estuprador
– (grita de dor) Aiiiiiiiii! (dominado) Não, não foi isso que eu quis
dizer, desculpe! (grita) Agora, me solta, está doendo!
Lúcia – (torcendo o braço dele) Você precisa
pedir com mais jeito.
Estuprador
– Aí! Me solta, por favor. (choroso)
Está doendo!
Lúcia – O
que você ia fazer? Você ia me estuprar, não é verdade?
Estuprador – (sentindo dor) Éééé... Eu pensei que você
era mulher... Ai...
Lúcia – Mas eu sou homem. Agora sou eu quem vai comer você
sou eu, viado (e abaixa a parte de trás da calça dele, deixando à mostra sua
bunda).
Estuprador – (gemendo) Ai.(pausa) Está bom, eu
dou. Mas põe devagar, tá?
Lúcia – (solta
o Estuprador que trôpega e dá um chute na bunda dele) Sai daqui, seu
traste. Não vou perder meu tempo comendo a sua bunda peluda.
O Estuprador foge rápida e tropegamente, levantando as
calças.
CENA 15
Após
a saída do Estuprador, Lúcia ajeita o vestido e passa a mão no pescoço onde o
Estuprador a agarrou.
Lúcia – Desgraçado! Não pode ver uma mulher sozinha na rua
e já vai querendo se aproveitar! Meu Deus, será que tudo vai acontecer comigo
hoje.
O
Homem após uma troca rápida de roupas entra apressado, agora vestido como
Juarez.
Juarez – Moça, está tudo bem com você? Eu vi o que
aconteceu pela janela do meu apartamento. Desci correndo para ajudar, mas você
deu conta do desgraçado sozinha. Ele machucou você!
Lúcia – Não. Quer dizer, só um pouco.
Juarez
– Como você é corajosa, moça!
Lúcia – Obrigada, eu ainda estou com as pernas tremendo.
Juarez – Esse tarado já atacou várias mulheres na região.
Venha comigo. Você vai lá em casa, toma um copo d’água e eu faço um curativo em
você.
Lúcia – (indecisa) Não precisa...
Juarez – Não, venha comigo. É perigoso ficar aqui.
Lúcia
vai saindo de cena amparada por Juarez.
Juarez – O que você está fazendo sozinha há essa hora?
Lúcia – Houve um incêndio no meu prédio e eu tive de sair
às pressas.
Juarez – Eu ouvi os carros dos bombeiros passando.
Os dois saem de cena.
CENA 16
O cenário é
o apartamento de Juarez, com algumas cadeiras e outros objetos cênicos. Lúcia
entra em cena, seguida por Juarez.
Juarez – Sente-se, Lúcia.
Lúcia – (sentando-se)
Obrigada, Juarez.
Juarez – Nossa, como você é bonita.
Lúcia – Olha, Juarez, você foi muito legal comigo, mas tem
uma coisa que eu preciso te confessar. E não sou mulher, sou homem.
Juarez – Eu já tinha percebido que você não era mulher.
Quer dizer, lá embaixo, no escuro fiquei em dúvida. Mas aqui...
Lúcia – Eu estava ensaiando para uma peça de teatro quando
aconteceu o incêndio.
Juarez – (sorrindo) Teatro? Bela desculpa. Já vi
outros como você: homens que gostam de se vestir de mulher. Você realmente fica
muito bonita montada!
Lúcia – (sorrindo)
O que é isso, Juarez. Obrigada! É a primeira vez que eu saio na rua vestida
assim. Por causa do incêndio tive de sair de casa correndo, sem dinheiro, sem
documentos, nada. E ainda nem jantei, estou morrendo de fome.
Juarez – Você está com fome? Eu acabei de fazer o jantar.
Vem, você é minha convidada.
Lúcia – Ah, não, Juarez, não precisa se incomodar. Eu só
quero trocar essas roupas e voltar para casa.
Juarez – As roupas eu te arranjo, mas primeiro você tem de
jantar comigo. Senão vou ficar ofendido.
Lúcia – (hesitante) Bom, já que você insiste...
Juarez – (mostrando o caminho) Venha, Lúcia. A
cozinha é por aqui. Já está tudo pronto.
Lúcia – (levantando-se
encabulada) Eu fico sem jeito...
Juarez – (pega na mão de Lúcia) Não é todo dia que
uma mulher tão linda vem ao meu apartamento!
Lúcia – (sorrindo) Ah, Juarez!
Juarez – (levando
Lúcia pela mão para fora de cena) Vou abrir uma garrafa de vinho para nós.
Os dois saem de cena.
CENA 17 – MONÓLOGO
O cenário fica vazio, as luzes diminuem, mas aqui e
ali focos se acendem e se apagam, enquanto é executada uma trilha sonora. Depois
de um tempo as luzes voltam ao normal e o som da música para. Pelos objetos em
cena percebe-se que ainda estamos no apartamento de Juarez.
Lúcia
entra em cena, tímida e sem meio jeito. Ela vai até o centro de palco e fala
dirigindo-se ao público.
Lúcia – (meio sem
jeito) Bem, aconteceu... Não sei o
que deu em mim... Eu nunca pensei que ia
fazer, mas fiz... (pausa, confessa sem jeito) Eu dei para o Juarez!!!
(pausa, continua em num outro tom) Sei lá, eu estava me sentindo tão feminina,
tão frágil depois de tudo o que aconteceu esta noite... E Juarez foi tão gentil
comigo, tão atencioso... Ele me tratou como mulher, mesmo sabendo que eu era
homem. Disse que eu era linda... Conversamos, bebemos vinho, e ele me fez
sentir tão desejada. Sei lá, pintou um clima, e eu não resisti... (pausa)
Bom, eu não era totalmente virgem, vocês sabem, eu tenho um vibrador em casa. Quando
me visto de mulher muitas vezes sinto um desejo irresistível de ser penetrada, para
sentir o que as mulheres sentem quando transam... quer dizer, mais ou menos (sorri
e continua num tom mais lânguido) O Juarez foi muito carinhoso comigo,
sabia é era minha primeira vez com um homem de verdade... Foi um pouco difícil
no começo, mas depois ficou bom... (empolga-se) Ficou muito bom! Ai,
gente! Muito melhor do que com o vibrador. No final eu gozei como nunca tinha
gozado na vida. Pela primeira vez eu me senti totalmente mulher, totalmente
fêmea... (pausa) Até aqui me vestir de mulher era apenas uma fantasia
entre quatro paredes, uma espécie de hobby. Agora a coisa ficou mais séria.
Hoje Lúcia Cross deixou de ser virgem...
CENA 18
Juarez
entra em cena usando uma toalha na cintura, aparentemente saindo do banho.
Juarez – Pronto, já estou novo em folha.
Lúcia – Eu preciso ir embora, Juarez. Você ficou de me
emprestar umas roupas suas.
Juarez – Ah, claro, Lúcia. (aproximando-se de Lúcia) Você está tão linda assim, que dá até dó
de pensar em você vestida de homem (tenta beijar o pescoço de Lúcia, que se
afasta).
Lúcia – Por favor, Juarez, não. Preciso, para voltar para
casa. Só me arranje as roupas, amanhã eu devolvo.
Juarez – (aproximando-se
novamente) Isso não é problema! Mas é ainda cedo, Lúcia. Nós podíamos
brincar mais um pouco.
Lúcia – (afastando-se)
Não, Juarez, foi minha primeira vez, você sabe. Não estou a fim de transar de
novo.
Juarez
– (amoroso) Ah, mas a gente
podia fazer outras coisas. Você tem a boca tão linda... Podia fazer coisas maravilhosas
com ela! (tenta beijar Lúcia que se
desvencilha)
Lúcia – Ah, Juarez, não... (afastando-se) Quem sabe outro dia...
CENA 19
Neste instante ouve-se um barulho de gente batendo
violentamente na porta.
Mulher – (gritando de fora da
cena) Abre, Juarez! Eu sei que você está com alguma mulher aí dentro. Abre!
Juarez – (assustado) Ai, meu Deus, é minha mulher!
Lúcia
– Mulher? Que mulher? Você não me
falou que era casado!
Juarez – (desesperado) Eu ia contar depois. Não deu
tempo... (sem saber o que fazer) Meu Deus, e agora?! Minha mulher é
louca de ciúmes! Ela me mata.
Ouvem-se
novas batidas, agora mais violentas na porta e a voz da Esposa.
Esposa – (gritando fora de cena) Abre, Juarez! Abre,
desgraçado, senão vou arrombar porta.
Juarez – (falando na direção da voz da mulher) Calma, amor. Já vou
abrir.
Lúcia – (nervosa)
E agora? O que vamos fazer?
Juarez – (desesperado) Ai, eu não sei. Ela tinha
viajado para a casa da mãe, disse que só voltava amanhã. Meu Deus, ela é louca,
totalmente louca!
De
repente ouve-se o estrondo da porta de abrindo, e a mulher de Juarez entra em
cena alucinada, com uma grande faca na mão.
Esposa – Juarez, seu desgraçado, é só eu virar as costas e
você aproveita! Quem é essa sirigaita que você trouxe para minha casa!
Juarez
– (assustado) Por favor, Marilda, eu posso explicar. Eu só estava
ajudando a moça. Ela quase foi estuprada.
Esposa – E essa toalha na sua cintura? Você não me engana
mais com essas suas histórias! Não é a primeira vez que eu te pego, Juarez!
Agora eu vou matar vocês dois.
A Mulher avança com a faca em riste na
direção de Juarez, que apavorado se esquiva e foge. Depois ela parte para cima
de Lúcia, que também se esquiva e foge para trás de Juarez. A mulher parte
novamente para cima de Juarez.
Mulher – Você não escapa, desgraçado!
Juarez e Lúcia correm cada um para
um lado e saem de cena por lados opostos. A Mulher olha rapidamente para os
dois lados e sai correndo na direção por onde saiu Juarez.
Mulher
– (fora de cena) Eu te mato,
Juarez!
CENA 20 – MONÓLOGO
Lúcia entra correndo em cena, para assustada num
canto do palco, e olha para trás.
Lúcia – Ai, meu Deus, mais uma louca. Vocês
viram o tamanho da faca dela. E o Juarez, a mulher é capaz matar ele. Coitado! (num
outro tom) Coitado, nada! Bem feito! Quem manda ser galinha! Nem me falou
que era casado. E ainda com uma louca daquelas. E ainda bem que ela não
percebeu que eu era homem, senão era capaz de cortar fora o pau dele (ri).
Nossa, descobrir que o marido está te traindo com outra mulher é uma coisa, descobrir
que é com um homem vestido de mulher é muito pior. (ri, depois olha a sua
volta) Vou ver se consigo voltar para casa. Meu prédio fica naquela direção
(aponta).
Lúcia
sai de cena pelo lado oposto ao que entrou.
CENA 21
O
palco fica mais escuro. Barulho de trovões e de chuva. A Velha Mendiga já está
em cena, acocorada atrás de algumas caixas de papelão. Ela usa roupas
esfarrapadas e tem um grande lenço amarrado na cabeça, que quase não deixa ver
seu rosto. Lúcia entra apressada, como se protegendo dos pingos da chuva. Ela
aparentemente chega num ponto onde está abrigada, para e fica esfregando os
braços.
Lúcia – Chuva: era só o que
faltava para a noite ficar completa!
O
som dos trovões e da chuva continua. Lúcia vai até o lado do palco onde está a
Velha oculta atrás das caixas de papelão.
Velha – (estendendo a mão aberta) Uma esmola, moça!
Lúcia – (assustada, grita) Ai! Quem está aí?
Velha – (idem) Uma esmola, por favor, moça!
Lúcia –
Desculpe, senhora, eu estou sem dinheiro.
Velha – O
que uma moça tão bonita está fazendo sozinha a essa hora da noite. Não vai me
dizer que você é daquelas que roda bolsinha.
Lúcia –
Nããão ! É que houve um incêndio no meu
prédio... E eu tive de sair às pressas.
Velha – Você é casada?
Lúcia – Não. Ainda não...
Velha – Não vá me dizer que ainda é virgem?
Lúcia – (sem jeito) Não. Não sou mais...(à
parte) E foi bem recente...
Velha – E tem filhos?
Lúcia –
Ah, não.
Velha – E por que não?
Lúcia – (sem jeito) Sei lá, nunca pensei muito
nisso, sabe?
Velha – Mas devia pensar. Tive meu primeiro filho com
dezesseis anos, depois foi um atrás do outro. Tive oito ao todo. Tudo aí
espalhado pelo mundo.
Lúcia – (olhando em volta impaciente) Que beleza!
Velha – E tudo parto natural. Abria a perna e ia botando
para fora, um atrás do outro (ela se levanta e se aproxima de Lúcia)
Quanto você for ter filhos, não queira esse negócio de cesariana, não. Prefira
o parto normal. Nada como sentir o filho saindo de dentro da gente.
Lúcia – (sem graça) Eu vou lembrar do conselho.
Velha – E comigo não tinha essa coisa de mamadeira, não. Amamentei
todos no peito. (Lúcia que não parece cada vez mais impaciente com a fala da
Velha) Eu sempre tive muito leite... Até vazava na roupa.
Lúcia – (estende a mão para frente para sentir os
pingos da chuva) Ah, a chuva já está diminuindo. (à Velha) Já vou
indo. Adeus, senhora!
Lúcia sai apressada pelo outro lado do palco, ainda
fugisse dos últimos pingos da chuva.
Velha – (acenando) Adeus! (sacode a cabeça) Essa mulherada hoje em dia só quer vida
fácil.
A Velha também sai de cena.
CENA 22
O
cenário está vazio. Lúcia entra parecendo exausta. Ela cruza o palco até perto
da coxia. Faz gesto com o dedo e ouve-se um som de campainha. Ela tem de tocar três
vezes para ser atendida. Por fim entra a Sindica com o mesmo pegnoir e os bobs
na cabeça.
Síndica – Seu, Gilberto, senhor demorou a voltar! O fogo foi
controlado faz tempo. Felizmente ficou só no primeiro andar, seu apartamento
não foi atingido. E já consertamos sua porta. (entrega duas chaves atadas
para Gilberto) Estas são as chaves novas.
Lúcia – O brigado, Dona Romilda.
Mulher – (sorrindo
maliciosa) Como foi o seu ensaio da peça de teatro... Como foi?
Lúcia – (afastando-se) Foi bom...
“Lúcia
sai de cena sob o olhar atento da Síndica”.
Síndica – (torcendo os
lábios e como se falasse consigo mesma) Teatro, teatro... Teatro é desculpa para
tudo. Pouca vergonha, isso sim! (pausa e vai saindo de cena) E Seu Gilberto parecia
uma pessoa tão direita. Quem diria! (e sai de cena)
CENA 23
Lúcia
entra novamente. Ela tem as chaves na mão. Começa a atravessar o palco, mas é
barrada pelo vizinho Geraldo, de camiseta regata e cigarro no canto da boca,
que vem pelo lado oposto..
Geraldo
– Oi, Gilberto! Voltou tarde, hein?
Lúcia – (contrariada)
Oi, Geraldo. Estou cansado.
Geraldo – O incêndio terminou faz tempo! (avança alguns
passos em cena, e se coloca entre Gilberto e a porta do apartamento) Onde
você esteve esse tempo todo vestido de mulher?
Lúcia – (tentando passar) Não é da sua conta.
Geraldo – (ofendido) Nossa, não precisa ficar desse
jeito! Eu quero ser seu amigo.
Lúcia – Uma outra hora, Geraldo (tenta passar, mas
Geraldo bloqueia sua passagem).
Gerado – (insinuante) Sabe, Gilberto, quando eu vi
você vestido assim... Achei legal... Você fica muito bem vestido de mulher... (pausa)
Você sabe, eu não sou viado, não ! Sou homem, muito homem... O meu negócio é
mulher.
Lúcia – Que bom, Geraldo. Você faz um belo par com a
síndica, Dona Romilda.
Geraldo – Não, não estou mais com ela. Nós brigamos. Aquela
mulher é uma louca! Morre de ciúme de mim, acha que eu dou em cima de tudo o
que é mulher. Até de você ela ficou com ciúme...
Lúcia – Fale para ela que de mim ela não precisa ter
ciúmes.
Geraldo – (bloqueando
a passagem de Lúcia com o braço) Você não quer vir um pouco aqui no meu
apartamento. A gente não precisa fazer nada. (aproxima-se bem de Lúcia) Só
para a gente conversar, se conhecer melhor...
Lúcia – (desvencilhando-se)
Eu não estou a fim... (faz um gesto como se destrancasse sua porta e sai de
cena).
Geraldo – (ofendido,
fala em voz alta) Olha, você não está com tudo isso não! Nem mulher você é!
(pausa, fica olhando na direção em que Lúcia saiu, depois fala como se
falasse consigo) Não é que o viadinho fica gostoso vestido de mulher! (ele coça o pênis e sai de cena).
CENA 24 -
MONÓLOGO
Lúcia
entra novamente em cena. De novo vê-se o espelho no tripé e a cadeira,
indicando que está de volta ao apartamento..
Lúcia – (após um
suspiro)
Enfim de volta em casa (depois de uma pausa ela olha para si mesma) Lúcia, você deve estar um lixo. (ela e vai para frente
do espelho) Amarrotada, despenteada, a maquiagem borrada (ajeita o cabelo e se olha novamente). Bom, até que não está tão mal assim... meio
selvagem... meio punk... (ri, depois se afasta
do espelho) Nossa, que noite!
Lúcia
senta-se na cadeira exausta, esparramada, sem se preocupar em fechar as pernas.
Lúcia – (começa a tirar as sandálias) Esses sapatos
estão me matando. Como que mulher consegue ficar o dia todo com essa coisa nos
pés? (massageando os pés) Amanhã vou começar
a procurar um novo apartamento onde ninguém me conheça. E ainda esse traste do
Geraldo resolveu dar em cima de mim... É só o que faltava.
Lúcia levanta-se e tira o vestido,
ficando novamente apenas de lingerie, calcinha, sutiã e meia-calça. Aproxima-se
do espelho e olha-se, de frente, de perfil e pelas costas, depois volta a ficar
de frente. Fica em silêncio por alguns instantes.
Lúcia – Enfim todas as calcinhas, os sutiãs, as meias, as
cintas-ligas e as roupinhas sensuais que eu vestia para ficar eu me admirando
no espelho, acabaram cobrando o seu preço. Lúcia Cross, depois desta noite, sua vida não mais vai ser a mesma!
FIM